quinta-feira, 10 de agosto de 2017

A feminização da pobreza é parte do legado do Chavismo

por Adriana Cantaura

Muito têm se falado sobre as sequelas nefastas das políticas governamentais do finado Presidente Hugo Chávez, as mais relevantes são a escassez de comida e remédios. Porém, até agora, pouco têm se falado acerca da agressão e dos prejuízos que essas políticas têm provocado em um setor social tão particular como o nosso, de mulheres.  A atual crise que atravessa o país afeta a todos, disso não temos dúvida, mas se fizéssemos o exercício de humanizar a pobreza, se pudéssemos personificar a crise, se estampássemos um rosto e um nome, lhes asseguro:  este rosto seria o de uma mulher, esse nome seria o de uma mulher.

As filas para adquirir os produtos regulados e as de comprar pão, estão repletas de mulheres; as intermináveis jornadas para buscar os remédios dos avós, pais, filhos, são feitas por mulheres. Nesta sociedade profundamente machista e patriarcal, que por aprendizagem cultural delega maior parte das responsabilidades familiares às mulheres –  o que limita consideravelmente nosso desenvolvimento profissional e de trabalho -, e na qual já está estabelecida a nossa vulnerabilidade, traz conseqüências específicas do ajuste aplicado pela via do corte de importações e do corte de gastos em saúde. Até alguns meses atrás, conseguir um absorvente já era uma proeza, a alternativa do copo menstrual era impagável para muitas, incluindo-me, em um país onde o salário mínimo ronda os 50 dólares mensais. Fazer um exame médico de rotina (citologia, ultra-som, mamografia) é um luxo nesse país, e não somente pela questão econômica, mas também pela falta de insumos médicos, e nisso nem as clínicas privadas se salvam. Mas nada se compara a situação das que se tornam mães, e me desculpo pelo tom trágico, porque não é contra a maternidade que aponto esta flecha, mas contra o Estado venezuelano que pouco ou nada faz para resguardar a integridade das mulheres, e menos ainda a das mães.

Bem, comecemos por nosso direito ao controle de natalidade. Entre as muitas coisas que faltam estão os contraceptivos (pílulas, implantes, DIU, anéis e preservativos). A angustiante situação que vivemos as mulheres venezuelanas nos últimos 3 anos, para ter acesso aos contraceptivos “disponíveis” no mercado e nas redes ambulatoriais públicas e privadas é, sem dúvida alguma, uma forma de violência de gênero orquestrada pelo mesmíssimo Estado venezuelano. O que torna essa escassez ainda mais perversa, diante da falta de contraceptivos e um iminente risco de uma gravidez indesejada, é o fato de que neste país o aborto é criminalizado. Com ou sem criminalização os abortos ocorrem clandestinamente e as histórias a respeito são aterradoras, pois é uma experiência verdadeiramente traumática em condições pouco seguras e sem nenhuma garantia de atenção médica adequada. O certo é que apesar do discurso “feminista” do governo, este segue reproduzindo a lógica patriarcal e impondo estas posturas conservadoras.

Por outro lado, aproveito para esclarecer que não promovo o aborto, mas acredito que é necessário descriminalizar sua prática, porque até agora o resultado da criminalização é que algumas poucas o façam de maneira segura, enquanto a muitas outras pode custar a vida, já que a penalização do aborto é uma outra forma de segregação social devido ao gênero, e é nesse sentido que faço a minha crítica.

Agora veja, se a mulher decidir seguir com esta gravidez não desejada, esta mulher enfrentará mais uma vez, os perversos alcances desta crise, pois não terá acesso às vitaminas pré-natais, pela simples razão de que não tem; tampouco contará com um pré-natal adequado, já que a história de cada hospital público deste país é “não estamos fazendo  ultra-som, pois a máquina não serve”, ou então “não temos reagentes para realizar os exames laboratoriais” e a crise é tão profunda que já atinge algumas clínicas particulares. A escassez e seus “não tem”, “não serve” e “não se consegue” atingiu a todas.

Essas conseqüências políticas, econômicas e sociais que nos deixou 18 anos de chavismo, representam um ataque sistemático às mulheres, e, por favor, peço às companheiras chavistas que guardem os discursos de livreto e as referências às leis promulgadas nos últimos anos, porque reconheço que algumas representam uma reivindicação simbólica, mas na prática, minhas irmãs, na prática só vemos ataques aos nossos direitos mais elementares, como é o controle sobre os nossos corpos. Por favor, guardem também as referências às práticas ancestrais de anticoncepção, como conhecer nosso ciclo e identificar as datas da ovulação. Adotá-los deve ser uma decisão pessoal de cada mulher, porque ainda que eu respeite e adote os citados métodos, e faço com convicção, é uma decisão individual que cabe a cada uma e que vai depender de muitos fatores, entre eles o conhecimento e o acesso a informação sobre estes métodos, e vocês sabem que desta pata manca seu governo.

As sistemáticas agressões que o gênero feminino vem sofrendo neste país é algo como um produto de “Tele Compra”, desses que passam à noite depois do noticiário: quando você acha que não pode agregar mais nada à oferta, surge um novo elemento que te deixa boquiaberta. Bom, o mesmo acontece com as mulheres venezuelanas, não é apenas o fato do estado não garantir acesso aos contraceptivos, de penalizar o aborto, de não prover vitaminas pré-natais às gestantes, ou não garantir tampouco o controle pré-natal, mas também, quando a mulher mãe e a criatura que gerou conseguem passar por todas essas vicissitudes, ocorre que não há fraldas, nem vacinas e se esta mulher com muito esforço pôde se alimentar bem e trazer ao mundo um bebê saudável, agora deve continuar a batalha por uma boa alimentação que a permita amamentar sem ficar desnutrida. Não é qualquer coisa o que digo, basta ver as estatísticas de desnutrição de mulheres gestantes e bebês recém nascidos que divulgou aquela Ministra de Saúde (Antonieta Caporale) que logo foi destituída.

As companheiras chavistas poderão responder que “as fraldas ecológicas são uma solução”, mas há que se levar em conta a realidade, como por exemplo que o serviço de distribuição de água (também competência do Estado) é uma verdadeira calamidade, e que há setores em La Guaira-Estado Vargas, onde moro, que passam 45 dias sem água. Que mãe vai acumular 45 dias de fraldas sujas? Então me digam: há ou não há uma sistemática agressão à mulher? Não é verdade que o chavismo trocou as esperanças e sonhos da luta feministas por migalhas? Cabe destacar também que ao fato de ser mulher, se adiciona o fato de ser pobre – aí sim, você jogou todos os números da rifa! Porque afinal de contas o que vai marcar a diferença entre ter acesso ou não aos contraceptivos, contar ou não com aborto seguro, ingerir ou não vitaminas pré-natais, gozar ou não de controle pré-natal, ter ou não fraldas descartáveis ou ecológicas, alimentar-se bem ou não para amamentar, é o poder aquisitivo da mulher. A isso se resume o “legado de Chávez”, à demagogia de um governo com discurso inclusivo e práticas excludentes que têm aumentado o fosso entre as classes e aprofundado as desigualdades de gênero, atacando implacavelmente a todas nós.

Fonte: CST/PSOL

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